DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO DIREITO DO TRABALHO

Tal teoria foi desenvolvida para evitar que os sócios, protegidos pelo instituto da pessoa jurídica, cometam abusos, fraudes…

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Introdução

Não obstante a pessoa jurídica seja distinta das pessoas que a constituem, em certas circunstâncias admite-se que a personalidade jurídica da sociedade seja desconsiderada, de modo que o patrimônio de seus membros responda pelas obrigações sociais. Nessa hipótese, resta configurada a teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

Tal teoria foi desenvolvida para evitar que os sócios, protegidos pelo instituto da pessoa jurídica, cometam abusos, fraudes ou irregularidades, sem que seus próprios patrimônios sejam atingidos.

Muito embora a legislação trabalhista não trate expressamente da matéria, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica vem sendo amplamente utilizada no processo do trabalho por aplicação subsidiária do disposto no § 5º, do artigo 28, do Código de Defesa do Consumidor – CDC (autorizada pelos artigos 8º e 769 da Consolidação das Leis Trabalhistas – CLT). Considerando que tanto empregados quanto consumidores encontram-se em posição de desvantagem na relação jurídica de que participam, recebem eles maior proteção por parte do Direito.

Como, na Justiça do Trabalho, o patrimônio da sociedade e dos sócios tem respondido, sem qualquer distinção ou ordem de preferência, pelas obrigações sociais, faz-se mister estudar os limites da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito justrabalhista.

O objetivo da pesquisa, em última análise, é o de demonstrar não só a possibilidade, mas também a necessidade da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica, com fulcro no §5º, do artigo 28, do CDC, porém apenas nos casos em que o patrimônio da sociedade seja insuficiente para arcar com as obrigações trabalhistas. Defende-se, portanto, a responsabilidade subsidiária – e não solidária – dos sócios da pessoa jurídica empregadora.

1 – Pessoa jurídica: noções gerais, causas e consequências de seu surgimento

A personalidade jurídica consiste na aptidão genérica atribuída a todas as pessoas para titularizar direitos e contrair deveres. Como o homem é sujeito das relações jurídicas de que participa, e a personalidade é a faculdade que lhe é reconhecida, pode-se afirmar que todo homem é dotado de personalidade jurídica e, consequentemente, é pessoa.(1)

A capacidade de assumir direitos e deveres, contudo, não é uma prerrogativa exclusiva dos seres humanos. Conforme leciona CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA:

“a complexidade da vida civil e a necessidade da conjugação de esforços de vários indivíduos para a consecução de objetivos comuns ou de interesse social, ao mesmo passo que aconselham e estimulam a sua agregação e polarização de suas atividades, sugerem ao Direito equiparar à própria pessoa humana certos agrupamentos de indivíduos e certas destinações patrimoniais e lhe aconselham atribuir personalidade e capacidade de ação aos entes abstratos assim gerados.” (2)

Nesse contexto, surgem as pessoas jurídicas, enquanto entidades abstratas, admitidas pelo Direito, capazes de figurar, em nome próprio, como sujeitos de uma relação jurídica. Tais pessoas compõem-se por um conjunto de indivíduos ou por uma destinação patrimonial e são criadas com vistas a alcançar um determinado fim. Assim como os seres humanos, esses entes abstratos são dotados de personalidade jurídica e recebem do ordenamento jurídico a denominação de “pessoa”, motivo pelo qual, para diferenciá-los, a doutrina dominante passou a referir-se ao homem como pessoa natural. A nomenclatura justifica-se uma vez que a personalidade jurídica do ser humano tem início a partir de um fato natural – nascimento com vida – ao passo que as pessoas jurídicas somente existem enquanto tais após a inscrição de seus atos constitutivos no respectivo registro (art. 1º e art. 45, ambos do CCB).

As pessoas jurídicas podem ser de Direito Público – ou seja, disciplinadas pelo Direito Público – ou de Direito Privado – reguladas pelo regime jurídico de Direito Privado. Essas últimas podem ainda ser estatais ou particulares. As estatais são aquelas para cujo capital houve contribuição do Poder Público, e as particulares, as compostas por recursos particulares, as quais podem assumir a forma de fundação, associação ou sociedade.

Como a pessoa jurídica possui personalidade distinta da de seus integrantes, constituindo-se em organismo autônomo, tem capacidade de se obrigar e responder, com seu próprio patrimônio, pelos débitos que assume, sem que se possa, a princípio, responsabilizar diretamente seus sócios.(3) A entidade criada assume, portanto, uma existência própria, que a distingue de seus elementos componentes.

O surgimento das pessoas jurídicas gerou maior segurança para os investidores, que passaram a poder investir na economia resguardando seu patrimônio pessoal, e deu um novo impulso à atividade econômica, adaptando-a às novas e complexas realidades sociais. Entretanto, teve também um desdobramento antissocial, caracterizado pelo abuso da personalidade jurídica, que consiste na “utilização maliciosa, pelos sócios, das prerrogativas de individualidade da pessoa jurídica que integram, para o cometimento de ilícitos e fraudes.”(4)

No ordenamento jurídico brasileiro, a rigorosa distinção patrimonial entre a pessoa jurídica e os sócios abre a possibilidade de que o ente abstrato seja utilizado para outros fins que não aqueles para os quais foi criado. Com relativa frequência, os sócios das pessoas jurídicas, agindo de forma desonesta, as endividam e dilapidam seu patrimônio, auferindo lucros pessoais por meios que contrariam a boa-fé contratual.

Exatamente para coibir a ocorrência de tais abusos é que foi desenvolvida a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, que será estudada a seguir.

2 – A teoria da desconsideração da personalidade jurídica

O surgimento das pessoas jurídicas, conforme visto, favoreceu o desenvolvimento econômico e social, na medida em que possibilitou que vários indivíduos, conjugando esforços em um mesmo sentido, e representados por uma mesma entidade jurídica abstrata, alcançassem propósitos que, possivelmente, não teriam condições de atingir caso atuassem de forma isolada.

Contudo, o instituto da pessoa jurídica também acarretou consequências nocivas ao Direito, já que, em alguns casos, os sócios, protegidos pela personalidade jurídica da sociedade, passaram a cometer abusos, fraudes e irregularidades, sem que seus próprios patrimônios fossem atingidos.

Para solucionar essa questão, foi desenvolvida a teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

Segundo tal teoria, não obstante o ente abstrato tenha personalidade jurídica própria, em certas circunstâncias esta poderá ser desconsiderada, de modo que o patrimônio dos sócios responda pessoalmente pelas dívidas da sociedade.

Em conferência proferida na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, RUBENS REQUIÃO afirmou que:

“todos os conceitos e preconceitos levaram o pensamento jurídico a conceber, sobretudo em nosso país, a personalidade jurídica como um véu impenetrável. Passou a ser vista, via de regra, como uma categoria de direito absoluto. Ora, a doutrina da desconsideração nega precisamente o absolutismo do direito da personalidade. Desestima a doutrina esse absolutismo, perscruta através do véu que a encobre, penetra em seu âmago, para indagar de certos atos dos sócios ou de destino de certos bens. Apresenta-se, por conseguinte, a concessão da personalidade jurídica com um significado ou um efeito relativo, e não absoluto, permitindo a legítima penetração inquiridora em seu âmago.” (5)

Cumpre ressaltar que a doutrina da desconsideração não visa a anular a personalidade da pessoa jurídica, mas, apenas, desconsiderá-la pontualmente no caso concreto em relação às pessoas ou aos bens que através dela se ocultam, quando restar configurada sua utilização irregular ou ilegítima.(6)

Exposta a teoria da desconsideração da personalidade jurídica em linhas gerais, passa-se ao seu estudo mais aprofundado.

2.2 – A “Teoria Maior” e a “Teoria Menor” da desconsideração da personalidade jurídica

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica, conforme visto, consiste na possibilidade de o magistrado, nas circunstâncias legais previstas, deixar de aplicar a tradicional regra da separação entre a sociedade e seus sócios, para responsabilizar os integrantes da pessoa jurídica pelas obrigações por ela contraídas.(7)

De acordo com FÁBIO ULHOA COELHO, existem, no Direito Brasileiro, duas teorias da desconsideração da personalidade jurídica, quais sejam, a “Teoria Maior” e a “Teoria Menor”, que serão analisadas a seguir em seus pormenores.(8)

2.2.1 – A “Teoria Maior”

De acordo com a “Teoria Maior” da desconsideração, o afastamento episódico da personalidade jurídica e da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas fica condicionado à comprovação da manipulação fraudulenta ou abusiva do instituto por parte dos sócios. Nesse sentido, o juiz somente estará autorizado a desconsiderar pontualmente a personalidade do ente abstrato caso este seja utilizado de forma indevida.(9)

Importante ressaltar que a decisão judicial que desconsidera a personalidade jurídica da sociedade visa apenas a coibir a fraude perpetrada no caso concreto, graças à regra da separação patrimonial entre pessoa jurídica e sócios. Tal decisão não importa na anulação ou no desfazimento do ato constitutivo da sociedade, mas apenas em sua suspensão episódica, de modo que tal ato continuará válido e eficaz para todos os demais fins.(10)

Segundo FÁBIO ULHOA COELHO, a “Teoria Maior” da desconsideração pode ser entendida a partir de dois vieses, um subjetivo e, outro, objetivo.

A formulação subjetiva da “Teoria Maior” da desconsideração elege como pressuposto para o afastamento da autonomia patrimonial da sociedade o uso fraudulento ou abusivo do instituto da pessoa jurídica.(11)

Essa disposição da teoria é denominada subjetiva uma vez que dá enfoque ao intuito do sócio ou administrador no sentido de frustrar o legítimo interesse de seus credores em receber aquilo que lhes é devido.

De acordo com a formulação objetiva da “Teoria Maior”, o pressuposto da desconsideração se encontra, primordialmente, na confusão patrimonial. Verificado que não há, no plano patrimonial, suficiente distinção entre sócios e sociedade, estaria o juiz autorizado a desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade, de modo a responsabilizar os sócios pelas obrigações sociais.(12)

2.2.2 – A “Teoria Menor”

Segundo a “Teoria Menor”, o pressuposto da desconsideração “é simplesmente o desatendimento de crédito titularizado perante a sociedade, em razão da insolvabilidade ou falência desta.” (13)

Assim, se o ente abstrato não possui patrimônio para arcar com seu débito, mas os sócios possuem, estes devem, independentemente de abuso ou fraude, ser responsabilizados pelas obrigações sociais. Nesse caso, a única exigência feita para que se dê a desconsideração é de que o direito creditício oponível à sociedade seja de natureza negocial.

2.3 – A teoria da desconsideração da personalidade jurídica no Direito brasileiro

O Direito Positivo brasileiro passou a adotar, formalmente e de modo mais consolidado, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, com o advento do Código de Defesa do Consumidor de 1990, que, em seu artigo 28, caput, e §5º, prescreve (l4)

“Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
(…)
§5º. Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.”

O citado artigo disciplina de forma ampla a teoria da desconsideração, permitindo que, na grande maioria dos casos, seja afastada a autonomia patrimonial da pessoa jurídica de modo a se responsabilizar os sócios pelas obrigações assumidas pela sociedade.

De acordo com TICIANA BENEVIDES XAVIER CORREIA, “deve-se esse elastecimento das hipóteses de aplicação da ”disregard doctrine” à hipossuficiência do consumidor, que deve ser protegido pela lei para que exista um equilíbrio em sua relação com o fornecedor.”(15)

A “Teoria Menor” da desconsideração, analisada na seção anterior, notadamente exerceu grande influência na redação do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor.

O segundo dispositivo do ordenamento jurídico pátrio a mencionar claramente a teoria da desconsideração foi o artigo 18 da Lei 8.884/94, conhecida como Lei Antitruste, que determina a desconsideração da personalidade jurídica como forma de tutelar as estruturas de livre mercado.

Em 1998, a Lei 9.605, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, adotou a teoria da desconsideração ao afirmar, em seu artigo 4º, que “poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.” Esta foi a terceira menção expressa feita à teoria da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do Direito brasileiro.

Muito embora a aplicação da teoria em análise já fosse uma realidade na seara jurídica nacional, o Código Civil de 1916 (diploma legal que regulou, de forma geral, as relações de Direito Privado até o ano de 2002) não dispunha sobre a matéria.

O novo Código Civil brasileiro, por sua vez, trouxe, em seu artigo 50, comando claramente direcionado à aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, a saber:

“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.”

Observa-se que o tratamento dado à teoria da desconsideração da personalidade jurídica no dispositivo legal acima transcrito restringe, em muito, àquele dado pelo Código de Defesa do Consumidor, já que são fixados, taxativamente, critérios objetivos para a devida aplicação da teoria.

De acordo com o disposto no Código Civil de 2002, o magistrado somente estará autorizado a desconsiderar a personalidade da pessoa jurídica, de modo a alcançar o patrimônio pessoal de seus sócios, quando se configurarem casos de confusão patrimonial ou de desvio de finalidade.

A confusão patrimonial verifica-se quando não é possível distinguir-se, de forma suficientemente clara, os patrimônios dos sócios e da sociedade. São indícios da confusão patrimonial, entre outros, o pagamento, por parte da sociedade, de dívidas dos sócios, ou o recebimento, por parte dos sócios, de créditos da sociedade e vice-versa.(16)

O desvio de finalidade, a seu turno, restará configurado caso o ente tenha sido instituído não para unir esforços e patrimônio, mas para esconder a identidade dos sócios permitindo a eles a prática de ato que lhes fora vedado por lei ou por contrato.

O tratamento dado à doutrina da desconsideração pelo novo Código Civil aproxima-se da formulação objetiva da “Teoria Maior” da desconsideração, na medida em que estabelece critérios objetivos autorizadores da aplicação da teoria.

Os dispositivos legais apresentados neste item tratam, clara e expressamente, da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no Direito brasileiro. Há, contudo, outro comando normativo, presente no artigo 2º, §2º, da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT – que, segundo parte da doutrina, autoriza a desconsideração no âmbito do Direito do Trabalho. Tal dispositivo será analisado em momento oportuno, quando do estudo específico da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no contexto justrabalhista.

4 – A despersonalização da figura do empregador pessoa jurídica

Entre os diversos princípios justrabalhistas que orientam e vinculam o magistrado na resolução dos conflitos envolvendo empregados e empregadores está o princípio da despersonalização da figura do empregador pessoa jurídica. Tal princípio está previsto nos artigos 10 e 448 da CLT, que tratam da sucessão trabalhista.

Esse princípio autoriza que, ao longo da relação de emprego, a responsabilidade quanto aos créditos trabalhistas seja transferida de uma pessoa para outra. Nesse sentido, também serve como fundamento para a aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica no Direito do Trabalho, já que, neste caso, ignora-se pontualmente a personalidade da pessoa jurídica empregadora para transferir aos seus sócios a responsabilidade pelos créditos dos empregados.

4.1 – A sucessão trabalhista

De acordo com os ensinamentos de MAURÍCIO GODINHO DELGADO, a sucessão trabalhista:

“Consiste no instituto justrabalhista em virtude do qual se opera, no contexto da transferência de titularidade de empresa ou estabelecimento, uma completa transmissão de créditos e assunção de dívidas trabalhistas entre alienante e adquirente envolvidos.” (17)

A sucessão trabalhista, portanto, se materializa na possibilidade de, no curso da relação de emprego, operar-se a substituição de um empregador pessoa jurídica, por outro, também pessoa jurídica, sem que haja mudança do contrato de emprego em relação ao empregado.

O instituto da sucessão trabalhista, conforme visto, encontra respaldo legal nos artigos 10 e 448 da CLT, que possuem as seguintes redações:

“Art. 10. Qualquer alteração na estrutura jurídica da empresa não afetará os direitos adquiridos por seus empregados.”;

“Art. 448. A mudança na propriedade ou na estrutura jurídica da empresa não afetará os contratos de trabalho dos respectivos empregados.”

Os efeitos da sucessão trabalhista, como visto, não atingem os empregados, mas tão somente os empregadores sucedido e sucessor.

O empregador sucessor, com a sucessão trabalhista, passará a responder, automaticamente, pelos direitos e obrigações empregatícios passados, presentes e futuros. A responsabilidade do empregador sucedido, via de regra, é inexistente. Isso porque, pela sucessão trabalhista, o sucessor assume integralmente a posição de empregador, respondendo por todos os direitos e obrigações oriundos do contrato de trabalho. Contudo, a jurisprudência, interpretando os artigos 10 e 448 da CLT, tem entendido haver responsabilidade subsidiária do antigo empregador caso a sucessão comprometa as garantias empresariais conferidas aos contratos de trabalho.

Nesse sentido prescreve o seguinte entendimento jurisprudencial:

“SUCESSÃO TRABALHISTA – IMPOSIÇÃO DE RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA À EMPRESA SUCEDIDA – POSSIBILIDADE. A moderna doutrina defende que a jurisprudência em formação tem acatado a ampliação das possibilidades de responsabilização subsidiária do antigo titular do empreendimento para além das situações de fraude comprovadas no contexto sucessório (arts. 9º da CLT; 159 do CCB/1916 e 186 do CCB/2003, c/c o art. 8º, parágrafo único, da CLT). Por essa nova óptica, preventiva da garantia de recursos suficientes para a satisfação dos créditos trabalhistas em favor do empregado, mesmo que não haja fraude, incide a responsabilidade subsidiária da empresa sucedida. Recurso de revista conhecido e provido.” ( TST, RR- 84417/2003-900-04-00.0, 1ª T., Rel. Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, publicado em 20.06.2008).

Diante do exposto, conclui-se que a despersonalização da figura do empregador pessoa jurídica, na sucessão trabalhista, se dá para transferir ao novo empregador, que o substituiu na relação empregatícia, a responsabilidade por todos os direitos e obrigações oriundos do contrato de trabalho dos empregados.

O instituto da sucessão diferencia-se da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, uma vez que, neste último caso, a despersonalização do empregador pessoa jurídica se dá episodicamente para atingir o patrimônio de seus sócios, não havendo alteração da figura do empregador no curso da relação de emprego.

4.2 – A teoria da desconsideração da personalidade jurídica no Direito do Trabalho

A desconsideração da personalidade jurídica no Direito do Trabalho, embora de grande interesse prático, ainda não alcançou consenso quanto aos seus pontos principais, seja em sede doutrinária, seja em âmbito jurisprudencial. Não obstante isso, a teoria vem sendo amplamente aplicada nos processos trabalhistas, “em nome da proteção do obreiro e para garantir a efetividade da prestação jurisdicional.” (18)

O dissenso jurisprudencial e doutrinário a respeito do tema justifica-se uma vez que não há, na legislação trabalhista, qualquer dispositivo que trate expressamente da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

As normas do Código Civil (art. 50) e do Código de Defesa do Consumidor (art. 28, §5º) são fontes subsidiárias do direito material e processual do trabalho. Podem, portanto, ser utilizados para justificar a desconsideração da personalidade jurídica na seara justrabalhista. A análise acerca de qual desses dispositivos se adequa melhor à realidade justrabalhista será feita no capítulo seguinte.

Parte da doutrina trabalhista aponta o §2º, do artigo 2º, da CLT, como fundamento para a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no Direito do Trabalho. Este dispositivo prescreve o seguinte:

“§2º. Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subsidiárias.”

Entre os doutrinadores que defendem a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no Direito do Trabalho, com fundamento no §2º, do artigo 2º da CLT, está SUZY ELIZABETH CAVALCANTE KOURY, a qual afirma que esse dispositivo impede que a personalidade jurídica da empresa contratante seja utilizada de forma abusiva, para encobrir a real vinculação do empregado com o grupo econômico.(19)

Há, contudo, autores que discordam dessa posição, afirmando que o referido dispositivo da legislação trabalhista não autoriza a desconsideração da personalidade jurídica no Direito do Trabalho. ALEXANDRE COUTO SILVA apresenta três motivos para tanto:

“primeiro, porque não se verifica a ocorrência de nenhuma hipótese que justifique sua aplicação como fraude ou abuso; segundo, porque reconhece e afirma a existência de personalidades distintas; terceiro, porque trata-se de responsabilidade civil com responsabilização solidária das sociedades pertencentes ao mesmo grupo. A existência do grupo econômico por si só não justifica a desconsideração da personalidade jurídica (…)” (20)

Sem dúvida, o dispositivo celetista em comento determina a solidariedade passiva (ou seja, quanto ao pagamento dos créditos trabalhistas) entre as entidades componentes do grupo econômico. Contudo, discute-se se existe também solidariedade ativa entre essas entidades.

Para os que defendem a tese da “solidariedade dual”, as empresas pertencentes ao grupo econômico são solidariamente responsáveis não só pelo pagamento das verbas devidas aos empregados, mas também pelos direitos e vantagens garantidos aos obreiros em função de seus contratos de trabalho. Assim, essas empresas constituiriam um “empregador único” em face dos contratos de trabalho firmados com quaisquer das pessoas jurídicas componentes do grupo.(21)

Note-se que a Súmula 129 do Tribunal Superior do Trabalho – TST – corrobora a tese do “empregador único” ao afirmar que: ” A prestação de serviços a mais de uma empresa do mesmo grupo econômico, durante a mesma jornada de trabalho, não caracteriza a coexistência de mais de um contrato de trabalho, salvo ajuste em contrário.” (grifo nosso)

Ora, para que o grupo econômico seja considerado um único empregador, a personalidade jurídica de cada uma de suas empresas deve ser desconsiderada pontualmente para atribuir à figura do grupo a responsabilidade por todos os efeitos advindos dos contratos de emprego com elas celebrado.

Dessa forma, embora o artigo 2º, § 2º, da CLT, não se refira expressamente à teoria da desconsideração da personalidade jurídica, ao autorizar que as empresas pertencentes ao grupo econômico sejam vistas como um único empregador (Súmula 129, TST), prova que a desconsideração é instituto possível no Direito do Trabalho.

É certo, contudo, que o dispositivo celetista, bem como a Súmula 129 do TST, não têm, por si só, o condão de autorizar a desconsideração da personalidade jurídica na seara trabalhista. Para isso, eles devem ser conjugados com preceito de fonte subsidiária do Direito do Trabalho, conforme será estudado a seguir.

5 – Parâmetros para aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica na execução trabalhista

5.1 – Código civil x Código de Defesa do Consumidor

Verificada a possibilidade de aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica no Direito do Trabalho, deve-se determinar qual o dispositivo da legislação pátria mais adequado a regular a utilização do referido instituto na seara trabalhista.

Conforme já ressaltado, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, quando de seu surgimento, visava tão-somente a combater as fraudes e os abusos perpetrados pela pessoa jurídica.

CARINA RODRIGUES BICALHO nota:

“a influência da teoria do abuso do direito sobre a teoria da desconsideração cuja aplicação fica autorizada sempre que a personalidade jurídica fora utilizada de forma abusiva, desviando-se dos fins para os quais fora criada e em razão de que o direito lhe confere autonomia patrimonial em face dos sócios. Essa é, sem dúvidas, a vertente tradicional da teoria da ”disregard”.” (22)

O desenvolvimento da teoria, contudo, levou à expansão de seu alcance, que não fica mais limitado aos casos de abuso de direito.

Atualmente, JOSÉ AFFONSO DALLEGRAVE NETTO sugere a classificação das bases da teoria em três correntes doutrinárias:

“A primeira, denominada subjetiva, admitindo o ”disregard” somente nos casos em que esteja comprovado o ”animus” fraudulento ou de abuso de direito por parte da sociedade devedora;

A segunda, finalística, aplicando-se a teoria da penetração em sintonia com o que dispõe o §5º do art. 28 do CDC, ou seja, a intenção fraudulenta é presumida com a presença do prejuízo do credor no momento da dificuldade da execução;

A terceira, objetivista, aplica amplamente o ”disregard”, seja em prol do credor ou mesmo do devedor, bastando a presença da separação patrimonial da sociedade como forma de obstáculo a determinado interesse tutelado pelo direito.” (23)

Note-se que a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica é hoje autorizada tão somente em face da inexistência, no patrimônio da sociedade executada, de bens suficientes para satisfazer o crédito trabalhista. Nesse sentido orienta-se a “Teoria Menor” da desconsideração, exposta no capítulo segundo desta monografia.

Os dois principais dispositivos legais que tratam expressamente da teoria em análise, e que tem aplicação subsidiária ao Direito do Trabalho, são os artigos 28 do CDC e 50 do CCB, transcritos alhures.

A norma do Código Civil de 2002, ao regular a matéria, foi mais restritiva, autorizando a desconsideração apenas nos casos de desvio de finalidade e de confusão patrimonial.

Na relação entre particulares, em que as partes envolvidas encontram-se em pé de igualdade, compatibilizando-se os princípios da autonomia privada, da função social dos contratos e da boa-fé objetiva, a lei foi mais moderada, exigindo a prova do abuso de direito para autorizar a desconsideração da personalidade jurídica.(24)

Contudo, em se tratando de relação em que uma das partes é hipossuficiente, como se dá no Direito do Trabalho e no Direito do Consumidor, o dispositivo do Código Civil mostra-se inadequado para regular o instituto da desconsideração, já que um dos polos da relação processual merece tutela especial por parte do Direito.

No caso das relações trabalhistas, impõe-se a aplicação do caput e §5º, do artigo 28, do Código de Defesa do Consumidor, na regulação da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, para estender-se aos empregados a tutela legal conferida aos consumidores. Nos dizeres de CARINA RODRIGUES BICALHO:

“O código de defesa do consumidor (…) estabelece norma de tutela ao hipossuficiente assemelhando-se ao objetivo de tutela do direito do trabalho. Essa similitude de finalidade das normas do consumidor e trabalhista justifica a aplicação da normatização mais ampla do direito do consumidor em detrimento do código civil, que apresenta hipóteses mais restritas da teoria em exame, posto que assegurará garantias mais amplas ao crédito trabalhista.” (25)

O dispositivo consumerista, conforme visto, apresenta diversas situações em que poderá ser relativizada a autonomia patrimonial da pessoa jurídica: abuso de direito, infração da lei, excesso de poder, violação dos estatutos ou contrato social, fato ou ato ilícito, estado de insolvência, falência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração e qualquer situação em que a personalidade jurídica seja obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados aos consumidores.

A aplicação subsidiária do artigo 28, caput e §5º, do CDC, ao Direito do Trabalho é autorizada pelo artigo 8º, parágrafo único, da CLT, desde que haja compatibilidade com os princípios trabalhistas.

Ora, o Direito do Trabalho guia-se pelo princípio da proteção ao empregado. A possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica tão-somente em face da insolvência da sociedade amplia sobremaneira a garantia de recebimento dos créditos trabalhistas, favorecendo o obreiro, parte materialmente mais fraca da relação de emprego.

Dessa forma, o §5º, do artigo 28, do CDC, deve ser o fundamento legal utilizado para desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade empregadora no Direito do Trabalho. Essa norma, de grande amplitude e abstração, deve ser interpretada conforme os princípios da dignidade da pessoa humana, da proteção ao trabalhador, da assunção dos riscos pelo empregador e da natureza alimentar das verbas trabalhistas.(26)

Veja-se o seguinte entendimento jurisprudencial que corrobora a tese apresentada:

“EXECUÇÃO. RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS PELA DÍVIDA DA SOCIEDADE. A desconsideração da personalidade jurídica do empregador é instituto jurídico previsto no artigo 28 da Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) e hoje albergada pelo artigo 50 do Código Civil, que tem como conseqüência a responsabilização dos sócios pelas dívidas da sociedade. Assim, ante a ausência de bens da pessoa jurídica, capazes de satisfazer a dívida, respondem os sócios pelo saldo, hipótese que se verifica de forma especial no processo do trabalho, em face do privilégio assegurado ao crédito.” (TRT 3ª R., AP 00559-2005-106-03-00-2, 2ª T., Rel. Convocado Fernando Antonio Viegas Peixoto, publicado em 01.08.2007).

No Direito do Trabalho, portanto, deve-se fazer uma interpretação literal do §5º do artigo 28 do CDC, de modo que, sempre que a autonomia patrimonial for obstáculo à satisfação do crédito do obreiro está autorizada a desconsideração da personalidade jurídica.

5.2 – A responsabilidade subsidiária dos sócios pelos créditos trabalhistas

Conforme visto, os bens dos sócios da sociedade executada responderão pelos créditos trabalhistas uma vez verificada a insuficiência do patrimônio social.

Por sua vez, o artigo 1.024 do CCB dispõe que “os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais.”

No mesmo sentido é o artigo 596, caput e §1º, do Código de Processo Civil – CPC – que prescreve:

“Art. 596. Os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade senão nos casos previstos em lei; o sócio, demandado pelo pagamento da dívida, tem direito a exigir que sejam primeiro excutidos os bens da sociedade.
§1º Cumpre ao sócio, que alegar o benefício deste artigo, nomear bens da sociedade, sitos na mesma comarca, livres e desembaraçados, quantos bastem para pagar o débito.”

Dessa forma, a responsabilidade dos sócios, em regra, é subsidiária. A execução, primeiramente, deverá ser direcionada contra quem se tornou inadimplente, ou seja, a sociedade empregadora. Somente depois de verificada a frustração da execução e constatada a insolvência da sociedade é que serão executados os bens particulares dos sócios.(27)

Caso o sócio seja demandado antes do exaurimento do capital social, poderá alegar em seu favor o benefício de ordem, devendo indicar os bens da sociedade situados na comarca, livres e desembaraçados, suficientes para a liqüidação do débito.

Observe-se o seguinte entendimento jurisprudencial a esse respeito:

“EXECUÇÃO. SÓCIO. BENEFÍCIO DE ORDEM. O sócio tem direito de exigir que sejam primeiro excutidos os bens da sociedade, indicando bens da sociedade livres e desembargados, quantos bastem para saldar o débito (artigo 596, parágrafo 1o, do CPC).” (TRT, 8ª R., AP 02058-1998-011-03-00-8, 5ª T., Rel. Convocado Emerson José Alves Lage, publicado em 19/05/2007).

Contudo, na prática trabalhista, os patrimônios dos sócios têm sido diretamente responsabilizados pelas dívidas da sociedade, em desrespeito ao benefício de ordem garantido pela legislação pátria. Nesse sentido, veja-se o seguintes entendimento jurisprudencial:

“DISREGARD DOCTRINE. BENEFÍCIO DE ORDEM. Em seara trabalhista, basta a inadimplência da empresa reclamada, enquanto devedora principal, para que a execução se volte contra os bens patrimoniais de seus sócios proprietários, inexistindo o chamado benefício de ordem ou responsabilidade de terceiro grau. O Direito, e em última instância o processo, não se poderão prender a formalismos jurídicos enquanto se discute a solução de crédito de natureza alimentar. Agravo a que se nega provimento.” (TRT 3ª R., AP 00375-2004-080-03-00-3, Rel. Caio Luiz de Almeida Vieira de Mello, publicado em 11/08/2007).

O entendimento de que o benefício de ordem não se aplica em âmbito trabalhista é equivocado. Isso porque, sendo a sociedade a verdadeira devedora, é o patrimônio social que, via de regra, deve arcar com todas as obrigações da pessoa jurídica. Somente após exaurido o patrimônio da sociedade sem o total pagamento dos credores, é que se pode cogitar o comprometimento do patrimônio dos sócios. Caso contrário, haveria verdadeiro desestimulo à constituição de sociedades empresariais, que são de suma importância para a economia do país e para a sociedade como um todo.

Deve-se destacar que, uma vez deflagrado o véu da pessoa jurídica, é facultado ao credor sujeitar à execução os bens dos sócios de maneira solidária. Nesse sentido prescreve o artigo 275 do CCB:

“Art. 275. O credor tem direito a exigir e receber de um ou de alguns devedores, parcial ou totalmente, a dívida comum; se o pagamento tiver sido parcial, todos os demais devedores continuam obrigados solidariamente pelo resto.”

O dispositivo legal transcrito acima determina que todos os sócios são igualmente responsáveis pelos créditos trabalhistas, podendo ser indistintamente cobrados pelo valor da dívida.

Conclusão

Conforme exposto nesta pesquisa, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica encontra ampla aplicação na prática forense trabalhista.

O instituto da desconsideração, no âmbito do Direito do Trabalho, é aplicado com supedâneo no §5º do artigo 28 do CDC. Assim, basta que o patrimônio social seja incapaz de garantir a satisfação dos créditos dos empregados para que os patrimônios particulares dos sócios sejam chamados a responder pelas dívidas da sociedade.

A responsabilidade dos sócios, contudo, será sempre subsidiária, ou seja, somente existirá em caso de insuficiência do patrimônio da sociedade e após exaurido o capital social. Não é razoável que essa responsabilidade seja solidária, já que a devedora é a sociedade – entidade distinta de seus sócios – e tal circunstância funcionaria como desestimulo ao investimento produtivo, que é de interesse de toda a coletividade.

Os créditos trabalhistas, de natureza alimentar, merecem ampla proteção por parte do ordenamento jurídico. No entanto, a empresa, como atividade econômica de produção e circulação de bens ou serviços, também merece ser resguardada. Dessa forma, a responsabilidade dos sócios pelas obrigações da sociedade deve ser subsidiária. 

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